ATIVIDADES
COMPLEMENTARES – SEMANA 31 / 6º ano
30 de novembro a 04
de dezembro de 2020
AVALIAÇÃO
4º Bimestre
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E.E. Célia Keiko
Ikeda / Pindamonhangaba - SP
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Língua Portuguesa –
Professora Márcia Alves
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“AVALIAÇÃO”
As Formigas
Quando minha prima e eu
descemos do táxi já era quase noite. Ficamos imóveis diante do velho sobrado de
janelas ovaladas, iguais a dois olhos tristes, um deles vazado por uma pedrada.
Descansei a mala no chão e apertei o braço da prima.
— É sinistro.
Ela me impeliu na direção da
porta. Tínhamos outra escolha? Nenhuma pensão nas redondezas oferecia um preço
melhor a duas pobres estudantes, com liberdade de usar o fogareiro no quarto, a
dona nos avisara por telefone que podíamos fazer refeições ligeiras com a
condição de não provocar incêndio. Subimos a escada velhíssima, cheirando a
creolina.
— Pelo menos não vi sinal de
barata — disse minha prima.
A dona era uma velha balofa,
de peruca mais negra do que a asa da graúna. Vestia um desbotado pijama de seda
japonesa e tinha as unhas aduncas recobertas por uma crosta de esmalte
vermelho-escuro descascado nas pontas encardidas. Acendeu um charutinho.
— É você que estuda medicina?
— perguntou soprando a fumaça na minha direção.
— Estudo direito. Medicina é
ela.
A mulher nos examinou com
indiferença. Devia estar pensando em outra coisa quando soltou uma baforada tão
densa que precisei desviar a cara. A saleta era escura, atulhada de móveis
velhos, desparelhados. No sofá de palhinha furada no assento, duas almofadas
que pareciam ter sido feitas com os restos de um antigo vestido, os bordados salpicados
de vidrilho.
— Vou mostrar o quarto, fica
no sótão — disse ela em meio a um acesso de tosse. Fez um sinal para que a
seguíssemos. — O inquilino antes de vocês também estudava medicina, tinha um
caixotinho de ossos que esqueceu aqui, estava sempre mexendo neles.
Minha prima voltou-se:
— Um caixote de ossos?
A mulher não respondeu,
concentrada no esforço de subir a estreita escada de caracol que ia dar no
quarto. Acendeu a luz. O quarto não podia ser menor, com o teto em declive tão
acentuado que nesse trecho teríamos que entrar de gatinhas. Duas camas, dois
armários e uma cadeira de palhinha pintada de dourado. No ângulo onde o teto
quase se encontrava com o assoalho, estava um caixotinho coberto com um pedaço
de plástico. Minha prima largou a mala e pondo-se de joelhos puxou o caixotinho
pela alça de corda.
Levantou o plástico. Parecia
fascinada.
— Mas que ossos tão
miudinhos! São de criança?
— Ele disse que eram de
adulto. De um anão.
— De um anão? É mesmo, a
gente vê que já estão formados... Mas que maravilha, é raro à beça esqueleto de
anão.
E tão limpo, olha aí —
admirou-se ela. Trouxe na ponta dos dedos um pequeno crânio de uma brancura de
cal. — Tão
perfeito, todos os dentinhos!
— Eu ia jogar tudo no lixo,
mas se você se interessa pode ficar com ele. O banheiro é aqui ao lado, só
vocês é que vão
usar, tenho o meu lá embaixo.
Banho quente, extra. Telefone, também. Café das sete às nove, deixo a mesa
posta na
cozinha com a garrafa
térmica, fechem bem a garrafa — recomendou coçando a cabeça. A peruca se
deslocou ligeiramente. Soltou uma baforada final: — Não deixem a porta aberta
senão meu gato foge.
Ficamos nos olhando e rindo
enquanto ouvíamos o barulho dos seus chinelos de salto na escada. E a tosse
encatarrada.
Esvaziei a mala, dependurei a
blusa amarrotada num cabide que enfiei num vão da veneziana, prendi na parede, com
durex, uma gravura de Grassmann e sentei meu urso de pelúcia em cima do
travesseiro. Fiquei vendo minha prima subir na cadeira, desatarraxar a lâmpada
fraquíssima que pendia de um fio solitário no meio do teto e no lugar atarraxar
uma lâmpada de duzentas velas que tirou da sacola. O quarto ficou mais alegre.
Em compensação, agora a gente podia ver que a roupa de cama não era tão alva
assim, alva era a pequena tíbia que ela tirou de dentro do caixotinho.
Examinou-a. Tirou uma vértebra e olhou pelo buraco tão reduzido como o aro de
um anel. Guardou-as com a delicadeza com que se amontoam ovos numa caixa.
— Um anão. Raríssimo,
entende? E acho que não falta nenhum ossinho, vou trazer as ligaduras, quero
ver se no
fim da semana começo a montar
ele.
Abrimos uma lata de sardinha
que comemos com pão, minha prima tinha sempre alguma lata escondida, costumava
estudar até a madrugada e depois fazia sua ceia.
Quando acabou o pão, abriu um
pacote de bolacha Maria.
— De onde vem esse cheiro? —
perguntei farejando. Fui até o caixotinho, voltei, cheirei o assoalho. — Você
não está sentindo um cheiro meio ardido?
— É de bolor. A casa inteira
cheira assim — ela disse. E puxou o caixotinho para debaixo da cama.
No sonho, um anão louro de
colete xadrez e cabelo repartido no meio entrou no quarto fumando charuto.
Sentou-se na cama da minha prima, cruzou as perninhas e ali ficou muito sério,
vendo-a dormir. Eu quis gritar: Tem um anão no quarto! mas acordei antes. A luz
estava acesa. Ajoelhada no chão, ainda vestida, minha prima olhava fixamente
algum ponto do assoalho.
— Que é que você está fazendo
aí? — perguntei.
— Essas formigas. Apareceram
de repente, já enturmadas. Tão decididas, está vendo?
Levantei e dei com as
formigas pequenas e ruivas que entravam em trilha espessa pela fresta debaixo
da porta, atravessavam o quarto, subiam pela parede do caixotinho de ossos e
desembocavam lá dentro, disciplinadas como um exército em marcha exemplar.
— São milhares, nunca vi
tanta formiga assim. E não tem trilha de volta, só de ida — estranhei.
— Só de ida.
Contei-lhe meu pesadelo com o
anão sentado em sua cama.
— Está debaixo dela — disse minha
prima e puxou para fora o caixotinho. Levantou o plástico. — Preto de formiga!
Me dá o vidro de álcool.
— Deve ter sobrado alguma
coisa aí nesses ossos e elas descobriram, formiga descobre tudo. Se eu fosse
você, levava isso lá pra fora.
— Mas os ossos estão
completamente limpos, eu já disse.
Não ficou nem um fiapo de
cartilagem, limpíssimos. Queria saber o que essas bandidas vêm fuçar aqui.
Respingou fartamente o álcool
em todo o caixote. Em seguida, calçou os sapatos e, como uma equilibrista
andando no fio de arame, foi pisando firme, um pé diante do outro na trilha de
formigas. Foi e voltou duas vezes. Apagou o cigarro. Puxou a cadeira. E ficou
olhando dentro do caixotinho.
— Esquisito. Muito esquisito.
— O quê?
— Me lembro que botei o
crânio em cima da pilha, me lembro que até calcei ele com as omoplatas para não
rolar. E agora ele está aí no chão do caixote, com uma omoplata de cada lado.
Por acaso você mexeu aqui?
— Deus me livre, tenho nojo
de osso! Ainda mais de anão.
Ela cobriu o caixotinho com o
plástico, empurrou-o com o pé e levou o fogareiro para a mesa, era a hora do
seu chá.
No chão, a trilha de formigas
mortas era agora uma fita escura que encolheu. Uma formiguinha que escapou da
matança passou perto do meu pé, já ia esmagá-la quando vi que levava as mãos à
cabeça, como uma pessoa desesperada.
Deixei-a sumir numa fresta do
assoalho.
Voltei a sonhar
aflitivamente, mas dessa vez foi o antigo pesadelo com os exames, o professor
fazendo uma pergunta atrás da outra e eu muda diante do único ponto que não
tinha estudado. Às seis horas o despertador disparou veementemente. Travei a
campainha. Minha prima dormia com a cabeça coberta. No banheiro, olhei com
atenção para as paredes, para o chão de cimento, à procura delas. Não vi nenhuma.
Voltei pisando na ponta dos pés e então entreabri as folhas da veneziana. O
cheiro suspeito da noite tinha desaparecido. Olhei para o chão: desaparecera
também a trilha do exército massacrado. Espiei debaixo da cama e não vi o menor
movimento de formigas no caixotinho coberto.
Quando cheguei por volta das
sete da noite, minha prima já estava no quarto. Achei-a tão abatida que
carreguei no sal da omelete, tinha a pressão baixa. Comemos num silêncio voraz.
Então me lembrei.
— E as formigas?
— Até agora, nenhuma.
— Você varreu as mortas?
Ela ficou me olhando.
— Não varri nada, estava
exausta. Não foi você que varreu?
— Eu?! Quando acordei, não
tinha nem sinal de formiga nesse chão, estava certa que antes de deitar você
juntou
tudo... Mas então, quem?!
Ela apertou os olhos
estrábicos, ficava estrábica quando se preocupava.
— Muito esquisito mesmo.
Esquisitíssimo.
Fui buscar o tablete de
chocolate e perto da porta senti de novo o cheiro, mas seria bolor? Não me
parecia um cheiro assim inocente, quis chamar a atenção da minha prima para
esse aspecto, mas ela estava tão deprimida que achei melhor ficar quieta.
Espargi água-de-colônia Flor
de Maçã por todo o quarto (e se ele cheirasse como um pomar?) e fui deitar
cedo. Tive o segundo tipo de sonho, que competia nas repetições com o tal sonho
da prova oral, nele eu marcava encontro com dois namorados ao mesmo tempo.
E no mesmo lugar. Chegava o
primeiro e minha aflição era levá-lo embora dali antes que chegasse o segundo.
O segundo, desta vez, era o anão. Quando só restou o oco de silêncio e sombra,
a voz da minha prima me fisgou e me trouxe para a superfície. Abri os olhos com
esforço. Ela estava sentada na beira da minha cama, de pijama e completamente
estrábica.
— Elas voltaram.
— Quem?
— As formigas. Só atacam de
noite, antes da madrugada.
Estão todas aí de novo.
A trilha da véspera, intensa,
fechada, seguia o antigo percurso da porta até o caixotinho de ossos por onde
subia na mesma formação até desformigar lá dentro. Sem caminho de volta.
— E os ossos?
Ela se enrolou no cobertor,
estava tremendo.
— Aí é que está o mistério.
Aconteceu uma coisa, não entendo mais nada! Acordei pra fazer pipi, devia ser
umas três horas. Na volta, senti que no quarto tinha algo mais, está me
entendendo? Olhei pro chão e vi a fila dura de formigas, você se lembra? Não
tinha nenhuma quando chegamos. Fui ver o caixotinho, todas se trançando lá
dentro, lógico, mas não foi isso o que quase me fez cair pra trás, tem uma
coisa mais grave: é que os ossos estão mesmo mudando de posição, eu já
desconfiava mas agora estou certa, pouco a pouco eles estão... Estão se
organizando.
— Como, se organizando?
Ela ficou pensativa. Comecei
a tremer de frio, peguei uma ponta do seu cobertor. Cobri meu urso com o
lençol.
— Você lembra, o crânio entre
as omoplatas, não deixei ele assim. Agora é a coluna vertebral que já está
quase formada, uma vértebra atrás da outra, cada ossinho tomando o seu lugar,
alguém do ramo está montando o esqueleto, mais um pouco e... Venha ver!
— Credo, não quero ver nada.
Estão colando o anão, é isso?
Ficamos olhando a trilha
rapidíssima, tão apertada que nela não caberia sequer um grão de poeira.
Pulei-a com o maior cuidado quando fui esquentar o chá. Uma formiguinha
desgarrada (a mesma daquela noite?) sacudia a cabeça entre as mãos. Comecei a
rir e tanto que se o chão não estivesse ocupado, rolaria por ali de tanto rir.
Dormimos juntas na minha cama. Ela dormia ainda quando saí para a primeira
aula. No chão, nem sombra de formiga, mortas e vivas desapareciam com a luz do
dia.
Voltei tarde essa noite, um
colega tinha se casado e teve festa. Vim animada, com vontade de cantar, passei
da conta. Só na escada é que me lembrei: o anão. Minha prima arrastara a mesa
para a porta e estudava com o bule fumegando no fogareiro.
— Hoje não vou dormir, quero
ficar de vigia — ela avisou.
O assoalho ainda estava
limpo. Me abracei ao urso.
— Estou com medo.
Ela foi buscar uma pílula
para atenuar minha ressaca, me fez engolir a pílula com um gole de chá e ajudou
a me despir.
— Fico vigiando, pode dormir
sossegada. Por enquanto não apareceu nenhuma, não está na hora delas, é daqui a
pouco que começa. Examinei
com a lupa debaixo da porta, sabe que não consigo descobrir de onde brotam?
Tombei na cama, acho que nem
respondi. No topo da escada o anão me agarrou pelos pulsos e rodopiou comigo
até o quarto, Acorda, acorda! Demorei para reconhecer minha prima que me
segurava pelos cotovelos. Estava lívida. E vesga.
— Voltaram — ela disse.
Apertei entre as mãos a
cabeça dolorida.
— Estão aí?
Ela falava num tom miúdo,
como se uma formiguinha falasse com sua voz.
— Acabei dormindo em cima da
mesa, estava exausta.
Quando acordei, a trilha já
estava em plena movimentação.
Então fui ver o caixotinho,
aconteceu o que eu esperava...
— O que foi? Fala depressa, o
que foi?
Ela firmou o olhar oblíquo no
caixotinho debaixo da cama.
— Estão mesmo montando ele. E
rapidamente, entende?
O esqueleto já está inteiro,
só falta o fêmur. E os ossinhos da mão esquerda, fazem isso num instante. Vamos
embora
daqui.
— Você está falando sério?
— Vamos embora, já arrumei as
malas.
A mesa estava limpa e vazios
os armários escancarados.
— Mas sair assim, de
madrugada? Podemos sair assim?
— Imediatamente, melhor não
esperar que a bruxa acorde. Vamos, levanta!
— E para onde a gente vai?
— Não interessa, depois a
gente vê. Vamos, vista isto, temos que sair antes que o anão fique pronto.
Olhei de longe a trilha:
nunca elas me pareceram tão rápidas. Calcei os sapatos, descolei a gravura da
parede, enfiei o urso no bolso da japona e fomos arrastando as malas pelas
escadas, mais intenso o cheiro que vinha do quarto, deixamos a porta aberta.
Foi o gato que miou comprido ou foi um grito?
No céu, as últimas estrelas
já empalideciam. Quando encarei a casa, só a janela vazada nos via, o outro
olho era penumbra.
Após a leitura do conto: “As Formigas”, Lygia Fagundes
Telles, responda:
1. Quais as personagens do conto?
2. Qual o enredo?
3. Em qual espaço se desenvolve a narrativa?
4. Qual o narrador?
5. Escreva uma breve resenha sobre o conto. O que você
achou, que sensações causaram e porque, você recomendaria, etc.